sexta-feira, 30 de julho de 2010

pouca convivência?



-é relativo ao quê mesmo?
-ao signo que podemos tatear.
-signo? tatear?
-é.
-peraí, cê tá me testando?
-não.
-olha, eu só queria era me casar de vestido de noiva sem ter que ser embromada por um teórico que acaba por não dizer diretamente o que quer.
-benzinho, não é que eu não queira me casar nesses padrões, é só um argumento...
ela cantarola:
-tá legal, eu aceito o argumento, mas não mude o samba tanto assim...
ele pisa um pouco mais duro que o normal indo escolher um filme na estante.
-poxa vida, não tem filme que preste aqui?
-eu sou uma mulher bem senso comum, eu sei, mas também sei conhecer algo do outro após uma semana.



foto e miniconto : isaias

quarta-feira, 28 de julho de 2010

miniconto


Furor. Olhar temerosíssimo de ambos. Aperta-lhe o braço frágil. Furor.
Puxa à arranques e a joga na parede de chapisco.
Lasca-lhe beijos na barriga inteira dizendo querer a criança assim mesmo.
foto e miniconto : isaias

terça-feira, 20 de julho de 2010

um conto da menina "estranha"


Era calada. Falava demais. Ou 8 ou 80. Que as frutas tinham fibras, que doces eram as uvas, que a banca estava cheia de mentiras. Dizia e ficava calada. Em casa, na escola, no ônibus. Por horas, dias, semanas. Não era por nada não, era por puro desinteresse mesmo.
-bom isso é bom. Não deslumbrar-se com as coisas do mundo é sempre bom.
Dizia um sujeito no bairro.
E ela ao ouvir, entortava levemente a boca, levantava uma das sobrancelhas, e cobria o rosto com as duas mãos.
Tudo vindo daquela menina era de se estranhar, porque todos eram iguais entre si e diferentes dela. E ninguém ao olhá-la, sabia o porquê de nada.



foto e conto : isaias

domingo, 18 de julho de 2010

um conto do renato sampaio


METÁFORA


Quando a relva florescia nos campos e os primeiros pássaros começaram a cantar nos arvoredos, surgiu em uma planície cortada por um riacho de águas límpidas uma jovem correndo pelos caminhos que ao longe apontavam.

Soltas ao vento, suas vestes, curtas, leves, transparentes, encobriam formas de tal modo perfeitas que, diante delas, a ninguém seria dado resistir aos delírios que, nesses casos, antevendo relva e luz, em desejos vêm ao ar, em volúpias se avolumam.


Caindo-lhe pelos ombros, seus cabelos flutuavam ao sabor da brisa e, seus passos, fortes, velozes, instantâneos, obedeciam a razões que, por tão pouco virem ao caso, delas aqui não se falará.

Reclinando-se à sua passagem, as flores, múltiplas, intensas, alvissareiras – girassóis, lírios, margaridas, alecrins –, rendiam-lhe graças, homenageavam suas formas: estação em cores, a própria cor.

– Em boa hora – murmuraram –, seus passos a conduziram até nós. Seja bem-vinda, os deuses a guiarão.

Claro que flores, quando chegam a murmurar, longe está de serem flores porque, a elas, no máximo, são atribuídas certas metáforas e metáforas, na realidade, jamais tiveram voz ou se fizeram ouvir. Mas, se não eram flores, eram, contudo, marginais escondidos entre elas. Pior: marginais movidos a droga, ávidos por novas doses e, àquela altura, em plena fuga de uma penitenciária localizada nos arredores. Exceção para o mais novo, que não dependia de drogas, sequer cumpria pena, mas, ativista inconseqüente e chegado ao que viesse, havia se juntado ao grupo sem que se soubesse bem por quê.

O que a seguir aconteceu não teve testemunhas; ou melhor, um único, raro pássaro, presenciou. Afastados, há muito, do convívio com outros seres – homens, mulheres, a vida, enfim –, aproximaram-se então da moça, cativaram-na, passaram-se por bons, ofertaram-lhe pouso, rosas, informações:

– A trilha é esta, não se preocupe. Nossos olhos serão os seus.

E Marcelina – era este o nome dela –, aquiescendo, assentou-se entre eles, disse sim, contem comigo, não vou decepcioná-los. E conversaram, traduziram-se, enturmaram-se. Olhos nos olhos, alegres, o prazer de estar ali.

Depois, seguiram em frente.

Mais ao longe, tarde a prumo, noite à vista, acamparam-se:

– Durma ali, gentil menina, velaremos o seu sono. Durma, durma, que o perigo passa ao longe. Afastaremos as serpentes, os azedumes, o próprio demônio, se existir, e as aves de rapina; aqui está uma.

Ingênua, tão bonita, quem diria, Marcelina acreditou. Acreditou e adormeceu. E acercaram-se, um a um, a seu redor; e apalparam-na, viajaram, foram além: um delírio. Noite adentro, sem limite ou exceções; afora o aqui não dito. E com tal cuidado que Marcelina, despertando, agradeceu-lhes, sonhou com os anjos, confessou: eu sou vocês.

Pela manhã, bem cedo, à cata dos fugitivos, alguns de seus iguais, incumbidos de abatê-los, chegaram de mansinho, aproximaram-se em silêncio, evitaram que acordassem e, abraçados, ela e eles, um só corpo, um só amor, fuzilaram-nos, um a um, quatro flores, duas pétalas, um horror.

Sorrateiro, ali ao lado, violino entre galhos, um pássaro, que a tudo assistia, conformou-se em não ser gente, adorou ser pássaro e, livre, livre, cantou como poucos cantam num dia assim: que o inferno lhes seja breve.

(Transcrito de Contos de bom humor. (Parte II - Outros Contos) - Belo Horizonte, 2007. Edições Hematita, 128 páginas)

sexta-feira, 16 de julho de 2010

jogou a toalha molhada mas errou. acertou a cunhada absorta na
novela das 8. atravessou a rua. não voltou. na varanda, elas em
silêncio, lembram dos passos brincalhões, principalmente em dias
nublados.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Ficavam dizendo que o cabelo dele tinha cor de bosta. Cantarolavam musiquetas insultantes. Principalmente quando todos do bairro iam vender amendoins torrados, frutas e pássaros silvestres em caixinhas. Ele não temia comentários torpes, que traziam os colegas diariamente. Cresciam assim, ora em estações quentíssimas, ora em frio de congelar pingüim que mesmo arrepiados, andavam unidos barulhentos e sem camisas (isso é que era realmente complicado).
Se vão, entre algumas espaçadas árvores da meio íngreme montanha. Longa pastagem dos seus sonhos. Mãos dadas, leveza no rosto. A catatonia foi deixada pros “aís”. São só regato e doçura nos olhos e bocas... corpo inteiro. Não falam: “beije-me, beije-me, subamos!” Um olha pro outro e não fala, pensa como se estivesse falando:
-eles podem acreditar, nosso bebê terá a graça dessa clara neblina, fora do mundo. Lá embaixo, o outro rapaz , triste, imagina a volta dela para seus braços.

domingo, 11 de julho de 2010

bege bem fosco num quarto estreito romeu coloca audazmente
o relógio à beira da cama no chão pois não tinha criado mas le
mbrara que nem precisava porque ia acordar bem cedo para
aproveitar o dia como havia aprendido num livro com uma po
bre magra personagem da clarice lispector

era dia de semana
não era domingo e se um temporal atrever o dia ?

até da solidã
o se aproveita.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

poema



Vamos produzir escadas!
Não ter que lavá-las escaldá-las depois
Será o impossível.
Vamos produzir escadas!
Cultivar o movimento,
Meio transversal,
A vontade de subir aos céus e descer ao
Inferno será talvez a metáfora da
Vida cotidiana.
Vamos produzir escadas!
Vamos produzir escadas!
Deixá-las pra posteridade,
Entrar numa repetição


foto e poema : isaias

terça-feira, 6 de julho de 2010

lugares


Lugares



Eustáquio é do interior, mas não do interior muito longe. Inácia de Carvalho dá a impressão de ter uma só rua, calçada e poeirenta, com buracos poucos. Engraçado como nos observam, calados, com um estado único de paciência e desânimo. Eustáquio é mais um dessas bandas e quer partir, e não se escandaliza nunca com os biscoitos, café com leite, queijo fresco, cajueiro abarrotado...

Quer ir embora pra BH. Quer ir embora, e olhar pra trás é ser paspalho, retrógrado, nostálgico. Segue, então, estrada afora. No retrovisor do caminhão verde de boleia descascada, expressa a dúvida leve de tudo. Chega logo no trevo de entrada para várias cidades. Confuso, pergunta a uma moça com destrutiva face de arrogância:

- ôpa, senhora, sabe me dizê onde fica belorzonte?

- eu sou daqui, mas nem eu nem você sabemos onde estamos.



foto e miniconto : isaias

domingo, 4 de julho de 2010

Por vezes incognoscível



Álvaro e Cíntia iam pra lá quando se sentiam serrados ao meio. Criaram um refúgio incólume, um ninho de vinho e incenso, quase uma homenagem a Eros que não conheciam. Lá, eles também fariam planos quase paranormais e, frente a frente, sorriam de si mesmos, aí paravam e, com voracidade subumana, aniquilavam seus desejos. Depois iam embora. Na volta a este lugar, só mudavam as queixas: os sorrisos e as risadas continuavam as mesmas. Não saturavam as formas animais de partir pros arranhões e mordidas. Cada beijo parecia ter sido reprimido há meses. Com isso, avolumavam as partes, as vontades pareciam durar até não mais existir fim esperado. Naquela cabana não faziam nada, além de desfragmentarem- se.
foto e miniconto : isaias