domingo, 18 de julho de 2010
um conto do renato sampaio
METÁFORA
Quando a relva florescia nos campos e os primeiros pássaros começaram a cantar nos arvoredos, surgiu em uma planície cortada por um riacho de águas límpidas uma jovem correndo pelos caminhos que ao longe apontavam.
Soltas ao vento, suas vestes, curtas, leves, transparentes, encobriam formas de tal modo perfeitas que, diante delas, a ninguém seria dado resistir aos delírios que, nesses casos, antevendo relva e luz, em desejos vêm ao ar, em volúpias se avolumam.
Caindo-lhe pelos ombros, seus cabelos flutuavam ao sabor da brisa e, seus passos, fortes, velozes, instantâneos, obedeciam a razões que, por tão pouco virem ao caso, delas aqui não se falará.
Reclinando-se à sua passagem, as flores, múltiplas, intensas, alvissareiras – girassóis, lírios, margaridas, alecrins –, rendiam-lhe graças, homenageavam suas formas: estação em cores, a própria cor.
– Em boa hora – murmuraram –, seus passos a conduziram até nós. Seja bem-vinda, os deuses a guiarão.
Claro que flores, quando chegam a murmurar, longe está de serem flores porque, a elas, no máximo, são atribuídas certas metáforas e metáforas, na realidade, jamais tiveram voz ou se fizeram ouvir. Mas, se não eram flores, eram, contudo, marginais escondidos entre elas. Pior: marginais movidos a droga, ávidos por novas doses e, àquela altura, em plena fuga de uma penitenciária localizada nos arredores. Exceção para o mais novo, que não dependia de drogas, sequer cumpria pena, mas, ativista inconseqüente e chegado ao que viesse, havia se juntado ao grupo sem que se soubesse bem por quê.
O que a seguir aconteceu não teve testemunhas; ou melhor, um único, raro pássaro, presenciou. Afastados, há muito, do convívio com outros seres – homens, mulheres, a vida, enfim –, aproximaram-se então da moça, cativaram-na, passaram-se por bons, ofertaram-lhe pouso, rosas, informações:
– A trilha é esta, não se preocupe. Nossos olhos serão os seus.
E Marcelina – era este o nome dela –, aquiescendo, assentou-se entre eles, disse sim, contem comigo, não vou decepcioná-los. E conversaram, traduziram-se, enturmaram-se. Olhos nos olhos, alegres, o prazer de estar ali.
Depois, seguiram em frente.
Mais ao longe, tarde a prumo, noite à vista, acamparam-se:
– Durma ali, gentil menina, velaremos o seu sono. Durma, durma, que o perigo passa ao longe. Afastaremos as serpentes, os azedumes, o próprio demônio, se existir, e as aves de rapina; aqui está uma.
Ingênua, tão bonita, quem diria, Marcelina acreditou. Acreditou e adormeceu. E acercaram-se, um a um, a seu redor; e apalparam-na, viajaram, foram além: um delírio. Noite adentro, sem limite ou exceções; afora o aqui não dito. E com tal cuidado que Marcelina, despertando, agradeceu-lhes, sonhou com os anjos, confessou: eu sou vocês.
Pela manhã, bem cedo, à cata dos fugitivos, alguns de seus iguais, incumbidos de abatê-los, chegaram de mansinho, aproximaram-se em silêncio, evitaram que acordassem e, abraçados, ela e eles, um só corpo, um só amor, fuzilaram-nos, um a um, quatro flores, duas pétalas, um horror.
Sorrateiro, ali ao lado, violino entre galhos, um pássaro, que a tudo assistia, conformou-se em não ser gente, adorou ser pássaro e, livre, livre, cantou como poucos cantam num dia assim: que o inferno lhes seja breve.
(Transcrito de Contos de bom humor. (Parte II - Outros Contos) - Belo Horizonte, 2007. Edições Hematita, 128 páginas)
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